24/11/2019

Singularidade

 

I


 – O chá está pronto - disse-me ele, cuspindo as palavras como se não quisesse estar ali.

E eu, já fragilizada com todas as incertezas que a vida depositou em minhas costas, naquela tarde de novembro, deixei que ele me tratasse daquele modo: ríspido, descortês.

– Estou indo, só espere um segundo, por favor... as minhas pernas estão cansadas, clamam por um descanso prolongado.

Ele me olhou com os cantos dos olhos, desconfiado, pensando em alguma resposta rápida, querendo ser ainda mais áspero. Dessa vez, porém, não deixei que ele o fizesse, levantei-me de imediato e logo estava com a xícara em mãos, tentando, em vão, esfriar o chá ardente.

– Suponho que não queira estar aqui - disse a ele, sem tardar.

– A senhorita anda supondo muitas coisas. - disse ele, estampando um sorriso irônico nos lábios.

Observei a vista ao redor e, em seguida, o chá em minhas mãos, trêmulas pela resposta indelicada.

– Você sabe que pode ir, a porta está aberta e o caminho até a saída é curto, não há complexidade alguma, certo?

– Certo! -  falou subitamente, já atravessando a porta, andando a passos leves, afastando-se sem menores explicações.

Se eu soubesse, se eu pudesse imaginar que sua partida seria imediata, não teria falado daquela maneira. Ainda que a nossa relação esteja desgastada, desejo que o seu afastamento não seja permanente.

– Espere... - disse baixinho, sussurrando, como se a minha voz pudesse chegar até ele.

Não chegou, como era de se imaginar. Sentei-me novamente, ainda com a xícara na mão, mas com um enorme desprezo daquela bebida nauseante. Pensando em como eu poderia, no passado, gostar tanto dela e, naquele momento, desejar jogá-la pelo ralo, sem nenhum arrependimento. 


II


Ele não retornou pelas próximas horas, chegou já à noitinha, quando todos dormiam, sonhando com o impossível. Inclusive eu, que sonhava com a sua volta. Acordei assustada, com o leve toque de suas mãos em meus cabelos encaracolados. Ele também se assustou, de súbito, deu um passo para trás, não imaginando que eu pudesse me alarmar.

– Desculpe, senhorita!  - falou baixinho, quase não saindo voz alguma.

– Está de volta, afinal - disse, ríspida, com a garganta seca.

A sua resposta fora apenas um olhar triste e acredito que descontente com o que acabara de ouvir. Levantou as sobrancelhas e abriu levemente a boca, como se quisesse me dizer algo importante. Não disse. Finalmente soltou o ar que estava preso desde que chegara e saiu repentinamente.

Dei um salto da cama, corri, para me certificar de que ele não pudesse fugir mais uma vez.

– Espere, por favor!- disse com a voz alterada.

Ele parou onde estava, olhou com um olhar pesado, reparando-me intensivamente, aguardando de mim uma resposta decisiva.

– Precisamos de uma solução, não acha? - indaguei por fim.

– Suponho que você não esteja, de fato, empenhando-se para isso.

– Você anda supondo coisas demais. - disse, rindo da minha própria piada.

Para o meu espanto, ele sequer mexeu os lábios. Encarou-me ainda mais, refletindo sobre o que eu acabara de dizer, pensando se seria digna de uma resposta sua. Então, se calou.

– Desculpe-me - disse a ele, após um silêncio interminável.

Pude ouvir a sua respiração cansada, insistindo em me observar a cada gesto, cada palavra que eu proferisse. Isso me deixava impaciente, sendo obrigada a olhá-lo com um semblante de súplica a todo momento.

– Não há solução por ora. - disse a mim, pausadamente.

– A princípio, sugiro que a senhorita reflita sobre os seus atos e perceba se a nossa relação ainda valha a pena ser reconstruída.

– Não compreendo a razão desse discurso - indaguei, logo em seguida.

– A razão? Diga-me, a senhorita é capaz de admitir que possui uma personalidade singular, inigualável? É capaz de se olhar no espelho e enxergar dentro de si mesma? Desconheço alguém que se compare com tamanha veemência. Presumo que não saiba que cada um nós possuímos uma personalidade exclusiva, mas cabe a você determinar se isso é vantajoso ou não.

Não tive a bravura de o observar pela última vez, envergonhava-me pelas verdades ditas e não desejava vê-lo sair outra vez, tão abruptamente. Quando levantei o olhar, ele já havia partido.


III


Na manhã seguinte, tive a certeza que ele não voltaria, pelo menos não naquele tempo. Sento-me na varanda, como na primeira vez que ele partiu. Tomo o chá que costumávamos fazer às 17h, apesar de ainda ser 15h. O chá, ao contrário de antes, está doce e agradável. Não entendo como ele poderia ficar apetitoso, após tanto desgosto. A princípio, temi que ele pudesse descer com um gosto amargo de desilusão, mas senti, unicamente, um sabor açucarado, como os caramelos que ele costumava me presentear.

Sorri, sozinha na varanda de nossa casa. Desejando a sua presença, para constatar que o chá estava verdadeiramente agradável. Apesar de suas palavras impiedosas da noite anterior, o chá, por fim, voltou a ser saboroso. Aquela bebida que outrora havia ficado desagradável, quente e incapaz de ser esfriada. Agora, naquele instante, se transformara.

IV


1 mês depois...

— Sente-se - disse a ele, ainda nervosa com a sua chegada.

— O chá está quase pronto e os biscoitos já estão na mesa, quentinhos e crocantes como você gosta.

— Quanta gentileza, senhorita! Assim eu não desejarei ir embora novamente.

Sorri discretamente, com os cantos da boca ainda indecisos se demonstrava felicidade ou não.

— Como fora a viagem? - perguntei, por fim.

— Boa! - respondeu ele, comendo um pedaço do biscoito e demonstrando que eu tinha acertado no sabor mais uma vez.

— Mas sei que estamos aqui por um outro motivo...

Não esperava que ele fosse ser tão rápido, a minha vontade era de postergar este assunto o quanto fosse possível. Discutir a nossa relação poderia ser impiedoso, um sofrimento pelo qual eu não ansiava por passar.

— Sim, estamos. Gostaria de dizer algo?

—  Senhorita, ainda se lembra de nossa última conversa? Sei que posso ter sido rude, direto, mas acredito que foi o melhor para ambos. Já faz algum tempo, inclusive, que isso se sucedeu, a senhorita pensou a respeito?

Eu havia pensado, era fato, mas não conseguia lançar as palavras assim tão de imediato. Levantei-me subitamente e corri para impedir que o chá queimasse. Ele me olhou com estranheza, talvez se perguntando a razão de o meu afobamento.

—  Não estou evitando a nossa conversa, antes que pense algo errado - gritei, enquanto corria em direção à cozinha.

Retornei à varanda já com o chá em mãos e receosa com a conversa que estava por vir. Talvez o meu semblante denunciava a minha ansiedade, pois assim que o servi,  ele adiantou-se:

 — Imagino que pode estar sendo difícil para a senhorita encontrar palavras para descrever o que se passou, caso seja de sua vontade podemos conversar sobre este assunto pela manhã. Não nego que estou cansado da viagem e preciso de um banho para descansar.

— Oh! Sim, como queira. - Respondi surpresa, mas aliviada.

O silêncio pairou sob nós até acabarmos o chá e os biscoitos. Percebi que ele estava imerso em pensamentos indecifráveis, olhando a paisagem à sua frente. Não tive coragem de interrompê-lo naquele momento, tão logo fiz o mesmo.

V


Às cinco na manhã seguinte, a cozinha já cheirava a café fresco. O queijo estava sobre a mesa, como minha avó fazia em sua casa, no interior de Minas Gerais. Sorri com a lembrança repentina e me permiti ficar tranquila pelos próximos minutos. Ele me olhou assim que entrei pela porta, acenou a cabeça como forma de dizer ''Bom dia'', pois já estava tomando o seu café. 

—  Bom dia! Como foi a primeira noite após a viagem? - disse, quebrando o silêncio.

— Vejo que acordou animada, fico feliz, senhorita! A minha noite foi maravilhosa, fico grato por ter perguntado. Não fique me olhando desse jeito, venha, sente-se e tome um café!

Tinha me esquecido o quanto ele poderia ser agradável e entusiasmado, é uma pena que o nosso último contato tenha me deixado com uma ideia errada a seu respeito, por um longo tempo. Sentei ao seu lado, observando-o servir a minha xícara com café e cortando um pedaço do queijo para mim, admirei sua delicadeza em cada gesto feito. Inesperadamente, pensei o quanto seria fácil apaixonar-se por ele, mesmo que eu nunca tenha o visto com outros olhos.

—   É muita gentileza sua me servir - indaguei, tentando esquecer os pensamentos que há pouco deixe-me levar.

— Às ordens!

O café foi tomado sob um silêncio inquietante, desejava começar a conversa que tanto precisávamos, mas fui incapaz de pronunciar qualquer palavra. Apesar da bebida quente, o corpo permanecia frio e  minha garganta manteve-se seca. Ele deve ter percebido a minha aflição, pois se levantou inesperadamente, ficou em pé, olhando para as montanhas à sua frente.

— Eu não parei de pensar em nossa conversa um minuto sequer, desde que partira. Você foi rude, e confesso que a mágoa apareceu sem eu perceber. Ela sumiu após algum tempo, e pude pensar ainda com mais clareza e refletir sobre minhas ações. - disse, por fim, sem ao menos perceber que finalmente conseguira falar sobre o assunto.

Ele olhou para mim e sorriu, como uma maneira silenciosa de dizer que eu poderia continuar.

— Presumo que a nossa relação não irá voltar a ser como no passado em pouco tempo, sei que ainda há de aparecer inúmeras turbulências, mas espero que isso não afete ainda mais os sentimentos que preservo por você. Não espere que eu tenha mudado completamente, ainda possui uma mar de incertezas em mim e as ondas permanecem violentas pela tempestade interminável. Espero de você a mesma paciência que sempre me demonstrou, afinal, não há como saber quando o sol de fato irá renascer no meu coração. - lancei todas essas palavras a ele, enquanto lágrimas escorriam sob meu rosto e pingavam na xícara em cima da mesa.

Ele deu passos lentos a meu encontro, levantou minha cabeça e olhou diretamente para os meus olhos, ainda marejados. Não disse uma palavra sequer, reparei que ele abriu a boca várias vezes, mas o vazio o preencheu. Demos as mãos e pude sentir a sua pele macia e quente, naquele momento, desejei poder abraça-lo e sentir a totalidade de seu corpo me esquentando, tornando-se abrigo, pouco a pouco. Isso apenas ficou em meus pensamentos, lamentavelmente.

VI


— O chá está pronto! - disse-me ele, sorrindo.

Eram cinco da tarde, o sol já não estava tão vivo e amarelo como antes, e assustei-me por não ter percebido as horas passarem. Após a nossa conversa dramática, os ponteiros do relógio não conseguiram acompanhar a rapidez de nossas palavras, conversamos como se o amanhã não fosse existir, relembramos e rimos de situações infelizes de nosso passado e, quando paramos para respirar, o sol estava se pondo entre as montanhas à nossa frente.

— Por que está rindo tanto? - perguntei a ele, desconfiada.

— Lembra-se do último chá que fiz para a senhorita? Sei que pôde sentir até o amargo de minhas palavras, quiçá do gosto da bebida nauseante que a ofereci.

— A minha vontade naquele momento era de jogá-lo pelo ralo da pia da cozinha.

Rimos, mais uma vez naquela tarde, e percebemos o quanto precisávamos daquela conversa despreocupada. Tomei um pouco do chá de erva-cidreira, estava morno, agradável. Enquanto minhas lembranças viajavam para aquele nosso encontro amargurado, ouvi o começo de uma garoa caindo no telhado da varanda. A garoa logo se transformou em uma chuva pesada, e não tivemos tempo de tirar as louças da pequena mesa. Corri para a porta e esperava que ele estivesse logo atrás, mas me enganei, mais uma vez. Ele me olhava, curioso, incerto, talvez; e eu, espantada e triste com uma possível partida novamente.

— Dessa vez, você não precisar partir. - disse, quase sussurrando.

— Não? - perguntou ele, intrigado.

— Não!

Estendi minha mão, como uma maneira de dizer que ele poderia ficar, o tempo que desejasse. Ele a pegou e a apertou, como na vez que eu lhe confessei sentimentos que eu jamais imaginei revelar a alguém.

— Dessa vez, eu não vou partir. - disse ele, por fim.

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