I
– O chá está pronto - disse-me ele, cuspindo as palavras como se não quisesse estar ali.
E
eu, já fragilizada com todas as incertezas que a vida depositou em
minhas costas, naquela tarde de novembro, deixei que ele me tratasse
daquele modo: ríspido, descortês.
– Estou indo, só espere um segundo, por favor... as minhas pernas estão cansadas, clamam por um descanso prolongado.
Ele
me olhou com os cantos dos olhos, desconfiado, pensando em alguma
resposta rápida, querendo ser ainda mais áspero. Dessa vez, porém, não
deixei que ele o fizesse, levantei-me de imediato e logo estava com a
xícara em mãos, tentando, em vão, esfriar o chá ardente.
– Suponho que não queira estar aqui - disse a ele, sem tardar.
– A senhorita anda supondo muitas coisas. - disse ele, estampando um sorriso irônico nos lábios.
Observei a vista ao redor e, em seguida, o chá em minhas mãos, trêmulas pela resposta indelicada.
– Você sabe que pode ir, a porta está aberta e o caminho até a saída é curto, não há complexidade alguma, certo?
– Certo! - falou subitamente, já atravessando a porta, andando a passos leves, afastando-se sem menores explicações.
Se
eu soubesse, se eu pudesse imaginar que sua partida seria imediata, não
teria falado daquela maneira. Ainda que a nossa relação esteja
desgastada, desejo que o seu afastamento não seja permanente.
– Espere... - disse baixinho, sussurrando, como se a minha voz pudesse chegar até ele.
Não
chegou, como era de se imaginar. Sentei-me novamente, ainda com a
xícara na mão, mas com um enorme desprezo daquela bebida nauseante.
Pensando em como eu poderia, no passado, gostar tanto dela e, naquele
momento, desejar jogá-la pelo ralo, sem nenhum arrependimento.
II
Ele
não retornou pelas próximas horas, chegou já à noitinha, quando todos
dormiam, sonhando com o impossível. Inclusive eu, que sonhava com a sua
volta. Acordei assustada, com o leve toque de suas mãos em meus cabelos
encaracolados. Ele também se assustou, de súbito, deu um passo para
trás, não imaginando que eu pudesse me alarmar.
– Desculpe, senhorita! - falou baixinho, quase não saindo voz alguma.
– Está de volta, afinal - disse, ríspida, com a garganta seca.
A
sua resposta fora apenas um olhar triste e acredito que descontente com
o que acabara de ouvir. Levantou as sobrancelhas e abriu levemente a
boca, como se quisesse me dizer algo importante. Não disse. Finalmente
soltou o ar que estava preso desde que chegara e saiu repentinamente.
Dei um salto da cama, corri, para me certificar de que ele não pudesse fugir mais uma vez.
– Espere, por favor!- disse com a voz alterada.
Ele parou onde estava, olhou com um olhar pesado, reparando-me intensivamente, aguardando de mim uma resposta decisiva.
– Precisamos de uma solução, não acha? - indaguei por fim.
– Suponho que você não esteja, de fato, empenhando-se para isso.
– Você anda supondo coisas demais. - disse, rindo da minha própria piada.
Para
o meu espanto, ele sequer mexeu os lábios. Encarou-me ainda mais,
refletindo sobre o que eu acabara de dizer, pensando se seria digna de
uma resposta sua. Então, se calou.
– Desculpe-me - disse a ele, após um silêncio interminável.
Pude
ouvir a sua respiração cansada, insistindo em me observar a cada gesto,
cada palavra que eu proferisse. Isso me deixava impaciente, sendo
obrigada a olhá-lo com um semblante de súplica a todo momento.
– Não há solução por ora. - disse a mim, pausadamente.
–
A princípio, sugiro que a senhorita reflita sobre os seus atos e
perceba se a nossa relação ainda valha a pena ser reconstruída.
– Não compreendo a razão desse discurso - indaguei, logo em seguida.
–
A razão? Diga-me, a senhorita é capaz de admitir que possui uma
personalidade singular, inigualável? É capaz de se olhar no espelho e
enxergar dentro de si mesma? Desconheço alguém que se compare com
tamanha veemência. Presumo que não saiba que cada um nós possuímos uma
personalidade exclusiva, mas cabe a você determinar se isso é vantajoso
ou não.
Não tive a bravura de o observar pela última vez,
envergonhava-me pelas verdades ditas e não desejava vê-lo sair outra
vez, tão abruptamente. Quando levantei o olhar, ele já havia partido.
III
Na
manhã seguinte, tive a certeza que ele não voltaria, pelo menos não
naquele tempo. Sento-me na varanda, como na primeira vez que ele partiu.
Tomo o chá que costumávamos fazer às 17h, apesar de ainda ser 15h. O
chá, ao contrário de antes, está doce e agradável. Não entendo como ele
poderia ficar apetitoso, após tanto desgosto. A princípio, temi que ele
pudesse descer com um gosto amargo de desilusão, mas senti, unicamente,
um sabor açucarado, como os caramelos que ele costumava me presentear.
Sorri,
sozinha na varanda de nossa casa. Desejando a sua presença, para
constatar que o chá estava verdadeiramente agradável. Apesar de suas
palavras impiedosas da noite anterior, o chá, por fim, voltou a ser
saboroso. Aquela bebida que outrora havia ficado desagradável, quente e
incapaz de ser esfriada. Agora, naquele instante, se transformara.
IV
1 mês depois...
— Sente-se - disse a ele, ainda nervosa com a sua chegada.
— O chá está quase pronto e os biscoitos já estão na mesa, quentinhos e crocantes como você gosta.
— Quanta gentileza, senhorita! Assim eu não desejarei ir embora novamente.
Sorri discretamente, com os cantos da boca ainda indecisos se demonstrava felicidade ou não.
— Como fora a viagem? - perguntei, por fim.
— Boa! - respondeu ele, comendo um pedaço do biscoito e demonstrando que eu tinha acertado no sabor mais uma vez.
— Mas sei que estamos aqui por um outro motivo...
Não
esperava que ele fosse ser tão rápido, a minha vontade era de postergar
este assunto o quanto fosse possível. Discutir a nossa relação poderia
ser impiedoso, um sofrimento pelo qual eu não ansiava por passar.
— Sim, estamos. Gostaria de dizer algo?
—
Senhorita, ainda se lembra de nossa última conversa? Sei que posso ter
sido rude, direto, mas acredito que foi o melhor para ambos. Já faz
algum tempo, inclusive, que isso se sucedeu, a senhorita pensou a
respeito?
Eu havia pensado, era fato, mas não conseguia lançar as
palavras assim tão de imediato. Levantei-me subitamente e corri para
impedir que o chá queimasse. Ele me olhou com estranheza, talvez se
perguntando a razão de o meu afobamento.
— Não estou evitando a nossa conversa, antes que pense algo errado - gritei, enquanto corria em direção à cozinha.
Retornei
à varanda já com o chá em mãos e receosa com a conversa que estava por
vir. Talvez o meu semblante denunciava a minha ansiedade, pois assim que
o servi, ele adiantou-se:
— Imagino que pode estar sendo
difícil para a senhorita encontrar palavras para descrever o que se
passou, caso seja de sua vontade podemos conversar sobre este assunto
pela manhã. Não nego que estou cansado da viagem e preciso de um banho
para descansar.
— Oh! Sim, como queira. - Respondi surpresa, mas aliviada.
O
silêncio pairou sob nós até acabarmos o chá e os biscoitos. Percebi que
ele estava imerso em pensamentos indecifráveis, olhando a paisagem à
sua frente. Não tive coragem de interrompê-lo naquele momento, tão logo
fiz o mesmo.
V
Às
cinco na manhã seguinte, a cozinha já cheirava a café fresco. O queijo
estava sobre a mesa, como minha avó fazia em sua casa, no interior de
Minas Gerais. Sorri com a lembrança repentina e me permiti ficar
tranquila pelos próximos minutos. Ele me olhou assim que entrei pela
porta, acenou a cabeça como forma de dizer ''Bom dia'', pois já estava
tomando o seu café.
— Bom dia! Como foi a primeira noite após a viagem? - disse, quebrando o silêncio.
—
Vejo que acordou animada, fico feliz, senhorita! A minha noite foi
maravilhosa, fico grato por ter perguntado. Não fique me olhando desse
jeito, venha, sente-se e tome um café!
Tinha me esquecido o
quanto ele poderia ser agradável e entusiasmado, é uma pena que o nosso
último contato tenha me deixado com uma ideia errada a seu respeito, por
um longo tempo. Sentei ao seu lado, observando-o servir a minha xícara
com café e cortando um pedaço do queijo para mim, admirei sua delicadeza
em cada gesto feito. Inesperadamente, pensei o quanto seria fácil
apaixonar-se por ele, mesmo que eu nunca tenha o visto com outros olhos.
— É muita gentileza sua me servir - indaguei, tentando esquecer os pensamentos que há pouco deixe-me levar.
— Às ordens!
O
café foi tomado sob um silêncio inquietante, desejava começar a
conversa que tanto precisávamos, mas fui incapaz de pronunciar qualquer
palavra. Apesar da bebida quente, o corpo permanecia frio e minha
garganta manteve-se seca. Ele deve ter percebido a minha aflição, pois
se levantou inesperadamente, ficou em pé, olhando para as montanhas à
sua frente.
— Eu não parei de pensar em nossa conversa um minuto
sequer, desde que partira. Você foi rude, e confesso que a mágoa
apareceu sem eu perceber. Ela sumiu após algum tempo, e pude pensar
ainda com mais clareza e refletir sobre minhas ações. - disse, por fim,
sem ao menos perceber que finalmente conseguira falar sobre o assunto.
Ele olhou para mim e sorriu, como uma maneira silenciosa de dizer que eu poderia continuar.
—
Presumo que a nossa relação não irá voltar a ser como no passado em
pouco tempo, sei que ainda há de aparecer inúmeras turbulências, mas
espero que isso não afete ainda mais os sentimentos que preservo por
você. Não espere que eu tenha mudado completamente, ainda possui uma mar
de incertezas em mim e as ondas permanecem violentas pela tempestade
interminável. Espero de você a mesma paciência que sempre me demonstrou,
afinal, não há como saber quando o sol de fato irá renascer no meu
coração. - lancei todas essas palavras a ele, enquanto lágrimas
escorriam sob meu rosto e pingavam na xícara em cima da mesa.
Ele
deu passos lentos a meu encontro, levantou minha cabeça e olhou
diretamente para os meus olhos, ainda marejados. Não disse uma palavra
sequer, reparei que ele abriu a boca várias vezes, mas o vazio o
preencheu. Demos as mãos e pude sentir a sua pele macia e quente,
naquele momento, desejei poder abraça-lo e sentir a totalidade de seu
corpo me esquentando, tornando-se abrigo, pouco a pouco. Isso apenas
ficou em meus pensamentos, lamentavelmente.
VI
— O chá está pronto! - disse-me ele, sorrindo.
Eram
cinco da tarde, o sol já não estava tão vivo e amarelo como antes, e
assustei-me por não ter percebido as horas passarem. Após a nossa
conversa dramática, os ponteiros do relógio não conseguiram acompanhar a
rapidez de nossas palavras, conversamos como se o amanhã não fosse
existir, relembramos e rimos de situações infelizes de nosso passado e,
quando paramos para respirar, o sol estava se pondo entre as montanhas à
nossa frente.
— Por que está rindo tanto? - perguntei a ele, desconfiada.
—
Lembra-se do último chá que fiz para a senhorita? Sei que pôde sentir
até o amargo de minhas palavras, quiçá do gosto da bebida nauseante que a
ofereci.
— A minha vontade naquele momento era de jogá-lo pelo ralo da pia da cozinha.
Rimos,
mais uma vez naquela tarde, e percebemos o quanto precisávamos daquela
conversa despreocupada. Tomei um pouco do chá de erva-cidreira, estava
morno, agradável. Enquanto minhas lembranças viajavam para aquele nosso
encontro amargurado, ouvi o começo de uma garoa caindo no telhado da
varanda. A garoa logo se transformou em uma chuva pesada, e não tivemos
tempo de tirar as louças da pequena mesa. Corri para a porta e esperava
que ele estivesse logo atrás, mas me enganei, mais uma vez. Ele me
olhava, curioso, incerto, talvez; e eu, espantada e triste com uma
possível partida novamente.
— Dessa vez, você não precisar partir. - disse, quase sussurrando.
— Não? - perguntou ele, intrigado.
— Não!
Estendi
minha mão, como uma maneira de dizer que ele poderia ficar, o tempo que
desejasse. Ele a pegou e a apertou, como na vez que eu lhe confessei
sentimentos que eu jamais imaginei revelar a alguém.
— Dessa vez, eu não vou partir. - disse ele, por fim.
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